Guerra Aérea e Literatura - W.G. Sebald

by - terça-feira, setembro 06, 2011

O título desse livro que reúne as conferências do escritor alemão W. G. Sebald – Guerra Aérea e Literatura – coloca uma espécie de relação não muito evidente.  Nascido em 1944, quando a Segunda Guerra Mundial terminava para os alemães, Sebald foi um judeu marcado pelo regime nazistaa posteriori, isto é, apesar de não ter vivenciado a perseguição propagada pelo governo hitlerista, sofreu na pele os ecos dessa política de extermínio, como uma violência cuja memória ele não guarda. Mais que isso: viveu numa Alemanha que buscava desesperadamente um discurso do esquecimento e do progresso, camuflada sob o álibi da culpa, incapaz de entender todo o sofrimento causado pela Guerra, inclusive aos próprios alemães (não à toa, essa situação se tornará insuportável, e ele irá radicar-se na Inglaterra durante os anos 1960) .
É esse o problema que Sebald busca compreender a partir da constatação de que não houve nenhuma obra da literatura alemã do pós-guerra que trabalhou os bombardeios contínuos que todo o território sofreu pelos aliados, em especial, os ingleses. Para compreender essa questão, é preciso ter ciência do tipo de estratégia empregada pelos generais de Winston Churchill, chamada area bombing. Trata-se não de destruir pontos-chaves para a subsistência alemã – fontes de combustível, regiões de plantio, torres de comunicação, aeroportos, etc. -, estratégia que como Churchill mesmo sabia, poderia render o governo inimigo mais rapidamente; mas de empregar uma devastação em massa em todo um território, indiscriminadamente, através de um bombardeio incendiário contínuo.
O que estranha Sebald é a falta de uma produção literária que tenta abarcar a visão dessa enorme destruição causada às cidades alemãs, já que praticamente toda a população havia experimentado tal horror. As labaredas que atingiam cinco andares de altura, o calor que expandia tão rapidamente que fazia a água de rios e lagos tornar-se incandescente,  temperaturas acima dos 1000 C° que transformavam pessoas em poeira, o vento causado pela expansão do ar que chegava a 150 km/h, etc, não encontra lugar na produção pós-guerra, na chamada Geração de 45. Quando isso ocorre, dirá Sebald, são autores à margem (escritores suíços, exilados, imigrantes ou cosmopolitas, como o caso de Elias Canetti)  ou tremendas exceções pouco lembradas e livros publicados apenas posteriormente, por intuição do próprio autor (caso notório aqui é  O Anjo Silencioso de Heinrich Böll, escrito nos anos 1940, mas publicado apenas em 1992. Outro autor de Sebald evoca continuamente é o de Alexander Kluge). Isso se devia, principalmente, ao discurso progressista alemão após o fim da Guerra e com a chegada do “milagre econômico” gerado pelo Plano Marshall norte-americano (Sebald evoca muito bem isso através da fotografia, da propaganda e do cinema da época). Some-se a isso uma espécie de culpa, que impedia os alemães de se verem como vítima, assim como denuncias aos britânicos como praticantes de extermínio em massa (assim como não se toca na culpabilidade norte-americana pelas devastações em Hiroshima e Nagasaki). Longe de Sebald colocar os alemães e os judeus no mesmo patamar: no entanto, é preciso enfrentar o fato de que os alemães também foram vítimas, mesmo que a causa inicial seja eles mesmos (e aqui parece impressionante a omissão total de um nome como Gunter Grass, que trabalhou tão bem essa questão em livros como Passo de Caranguejo).
Na segunda e terceira parte, Sebald muda levemente a questão para mostrar que mesmo nas obras literárias que tentam exibir esse tema, há uma espécie de “falsificação” e de “adornamento” da questão. Obras de Hermann Kasack, Hans Erich Nossack, Peter de Mendelssohn e Arno Schmidt são lidas aqui. Apesar de, em alguns momentos, o argumento parecer frágil – Sebald exige uma espécie de um grau zero de representação dos fatos, mesmo que esses sejam “irrepresentáveis” –, ele ganha força quando o autor apela para um fator muito simples e muito violento: a retórica que essas obras apresentam  para dar conta da violência da Guerra na Alemanha tem grande dívidas com a própria retórica nazista. Sebald apresenta comparações brilhantes nesse ponto, ainda que certamente elas merecessem um espaço muito maior e mais detido. Ele pensará na insistência de se manter certos hábitos acima de tudo como uma espécie de alienação mesmo à beira do abismo: basta lembrar as festas com música que os altos escalões nazistas faziam mesmo sob o ataque de bombas (tão bem representado no filme A Queda de Oliver Hirschbiegel). Do mesmo modo, os mesmos valores são mantidos, as mesmas formas de falar e de escrever, ainda que tudo esteja em ruínas (ou ainda justamente porque elas estão em ruínas, ruínas que ninguém quer enxergar).
Por último, como anexo, Sebald ainda mostrará um aspecto mais específico e mais horrendo dessa questão: a do autor que deliberadamente falsifica a sua própria história em prol da glorificação literária. É assim que será lido Alfred Andersch, tido como importante autor dessa geração pós-guerra. Vasculhando sua obra e sua biografia, Sebald mostrará como Andersch reconstruirá a narrativa da sua própria vida, em suas “memórias” e romances, para se colocar como um “prisioneiro de guerra”, alguém que não se submetia ao regime de Hitler, e com isso ganhar prestígio entre os autores de 45. Entretanto, o que Andersch esconde é seu próprio percurso no interior do regime nazista, as alianças (inclusive os casamentos) que vai formando para conseguir se tornar um escritor “privilegiado”. Com o fim do regime, passa para o outro lado, para o lado “vencedor”. É particularmente atroz o modo como Andersch faz usos e desusos do nome da sua primeira esposa, uma judia de família abastada (casa-se por interesse, separa-se quando vê que isso é prejudicial a sua carreira durante o Reich – quase mandando-a para os campos de concentração –, e depois volta a usar seu nome para se colocar como “vítima” no pós-guerra). Com esse texto, o mais bem estruturado da série, Sebald consegue de fato pôr em evidência seus argumentos e denuncia um problema enorme para a sociedade alemã, problema que, segundo o autor, já está despontando com novas formas de violência social.
Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das letras

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