Em destaque #04: Como e por que ler "Parem de falar mal da rotina", de Elisa Lucinda
Elisa Lucinda dos Campos Gomes (Vitória, ES, 1958), graduada em jornalismo, atriz na cidade do Rio de Janeiro desde 1986, atua em teatro, cinema e televisão. Publicou seu primeiro livro de poesia O Semelhante em 1994 (também lançado no formato de CD de poesia) e o transformou numa peça de mesmo nome, na qual declamava seus versos e conversava com a platéia. Parem de falar mal da rotina seguiu o caminho inverso: primeiro foi assistido nos palcos por mais de um milhão de pessoas no mundo todo (desde 2002), depois, foi transformado em livro (2010). Elisa Lucinda é reconhecida pela sua literatura poética (Eu Te Amo e Suas Estréias, Notícias de mim – ambos, livro e CD -, A Fúria da Beleza), infantil (A menina transparente, Lili a rainha das escolhas, O órfão famoso, O menino inesperado), além de seus espetáculos, recitais e workshops; por seus trabalhos: na televisão (Mullheres Apaixonadas, Páginas da Vida); no cinema (Alegres comadres, Gregório de Matos); e pela “Escola Lucinda de Poesia Viva” na qual ensina interpretação teatral da poesia. Mantém o site casapoema.com.br/, o blog www.escolalucinda.com.br/alira/, perfil no Facebook (Elisa Lucinda) e no twitter (@lucindaelisa).
Parem de falar mal da rotina
Teus dias escorrem entre os dedos como se não tivessem acontecido, ou como se todos eles fossem iguais? Eles realmente se repetem ou é você que parou de despender energia na sua oficina de desejos? Está precisando potencializar a coragem que a vida lhe exige? Então pare de falar mal da rotina.
A protagonista, na peça, e narradora, no livro, é uma poeta contemporânea, na paisagem de uma grande cidade, que, do início ao fim da obra, “conversa” conosco (platéia e leitor), entremeando a prosa, num tom bastante coloquial e bem-humorado, com poesias de Elisa Lucinda, reflexões filosóficas, existenciais e histórias de pessoas comuns, como nós, com seus enredos retirados do cotidiano. Sua narração tem por tema, não uma ficção qualquer, mas a “professora” dona vida e o viver, os quais são chamados, comumente, de rotina e, aparentemente, repetem-se inalteradamente todos os dias, mas só aparentemente.
A narradora cobre com o verniz da sua subjetividade, o contorno opaco da rotina, “reparando” nas pessoas, situações, cenas, fatos, acontecimentos, nos gestos (na verdade, sempre únicos e irrepetíveis), que circundam a dramaturgia diária de todos, personagens que somos do enredo de nossa própria trama existencial (que daria um belo livro, uma peça, ou um filme).
Reparar, palavra de muitos sentidos, é um dos três pilares em que está assentado o verso e o ofício da artista-protagonista, que repara (atenta, dá importância, fixa a vista) as pessoas se batendo para achar o celular, o casal de namorados no aeroporto, uma filha falando com a mãe na loja, o artesão popular cujo atelier é a rua, o mendigo, o taxista, a empregada que deixa o marido que lhe bate e casa com um paquera, a moça que passa na hora do rush na fila do ônibus…
A poetisa, ao contemplar o mundo, consegue, por momentos, viver a vida daqueles que estão sendo “reparados”, ou seja, consegue ser, por um momento, o outro. E o leitor, ao reparar a poeta fazer isso, também tem a oportunidade desta “experiência” (a de ver-se de fora, auto-analisar-se) e é desafiado a fazer o mesmo, consigo, em sua própria vida. Nessa experiência, redescobrimos nossa humanidade, percebendo que “todo mundo quer ser feliz, todo mundo é sonhador, lutador, errático; todo mundo quer amar, todo mundo quer ser amado, todo mundo se endivida, todos querem fazer algum desenho no papel da vida” (LUCINDA, 2010, p. 35-36).
Os outros dois pilares da artista são “o costume de escutar a conversa dos outros” (com o qual Elisa transforma-se em cronista de seu tempo, registrando as histórias que ouve nas esquinas, lojas, praias, aeroportos e ruas do mundo) e o desfrutar da “consciência real e constante de que [...] todo homem é presumidamente de primeira classe”, e não “só quem é rico, famoso e/ou quem em poder” todos nós somos, a princípio, cidadãos de primeira classe” (LUCINDA, 2010, p. 32 e 37).
Se a “professora” dona vida pode nos ensinar a viver, como sugere Elisa Lucinda, Parem de falar mal da rotina é um excelente livro de auto-ajuda, no melhor sentido que este termo pode ter (se é que o pode) e deveria figurar na lista de mais vendidos. A obra pode ser relacionada à Como Proust pode mudar sua vida de Alain de Botton e A arte da vida de Zygmunt Bauman. No primeiro, o autor encontrou “ensinamentos” na vida e obra de Proust e o compilou num “manual” leve e bem-humorado que pode ajudar o leitor a mudar sua vida e ser mais feliz. No segundo, Bauman destaca que não encontraremos num shoping “o amor e a amizade, os prazeres da vida doméstica, a satisfação que vem de cuidar dos entes queridos ou de ajudar um vizinho em dificuldade, a auto- estima proveniente do trabalho bem-feito [...] o reconhecimento, a simpatia e o respeito dos colegas [...] e outras pessoas a quem nos associamos” (BAUMAN, 2009, p. 12). Como diz Elisa: “vender ou comprar não garante a qualidade de nada”, pois “beijos, abraços, advertências, opiniões, afetos, cuidados [...] carinho, atenção, amizade, consideração enfim, costuma ser de graça mesmo”. A multidão de mais de 50 tipos (personagens) “reparados” na obra de Elisa Lucinda nos mostra que pode obter-se e usufruir esses bens não-comerciais e não-negociáveis assumindo, no dia-a-dia, o papel de atores, diretores e produtores das nossas próprias vidas, na qual “o enredo / a gente sempre todo dia tece” (LUCINDA, 2010, p. 21 e 48).
Outra obra com a qual o texto dialoga é O mestre ignorante do filósofo Jaques Rancière, para quem a igualdade é da natureza humana e a desigualdade (por riqueza ou instrução) é uma ficção inventada para desunir e categorizar. Elisa desenvolve muitas de suas idéias como a de que todo homem é capaz de aprender e ensinar: ouvindo pessoas, independente da classe social ou grau de instrução, aprendemos com elas. O motorista de táxi e a cozinheira podem ser nossos professores na vida, basta que os enxerguemos como pessoas e não como sub-humanos.
Ao criar poesia e personagens que nos propiciam inúmeras experiências de alteridade (ou outridade, como diria Octavio Paz), fazendo isso primeiro no universo da oralidade, lhes dando vida em suas performances e no palco, para depois devolvê-los ao mundo da escrita, publicando-os em livro, como ocorre com Parem de falar mal da rotina, Elisa Lucinda propicia à “leitura entre nós”, múltiplas formas e diferentes linguagens de uma mesma obra de arte que dialoga e se relaciona com outras obras e formas (filmes, peças de teatro, literatura que nomeiam os capítulos e subtítulos das cenas do seu livro).
Os participantes da 14ª Jornada Nacional de Literatura poderão apreciar esta obra em mais de um meio e linguagem, pois além de ler o livro poderão assistir ao espetáculo na Jornight de 23 de agosto. Para os que não o puderem, existem vários vídeos no youtube com trechos da peça e, outros, com Geovana Pires, Ana Carolina e Elisa Lucinda declamando poesias e partes do livro (no site da autora existe um link para “TV Casa Poema / Escola Lucinda”, no qual há uma seleção).
Beth Carvalho, que assistiu a peça diversas vezes, disse que todos deveriam ver Parem de falar mal da rotina uma vez na vida. Assistir a peça, parar e reparar o livro, é uma possibilidade de sentir e vivenciar muitas experiências pessoais de outridade, e assim recuperar um pouco de nossa capacidade de contemplar, sentir a aura (como diria Walter Benjamin) das coisas, que significa sentir-se integrado aquilo que contemplamos (o personagem, a paisagem, o poema), reconhecendo-se nele e sendo por ele reconhecido (como se ele nos devolvesse o olhar que lhes endereçamos), algo tão raro, caro e escasso em nossos dias.
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