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Em destaque #04: Como e por que ler "Parem de falar mal da rotina", de Elisa Lucinda

by - quinta-feira, agosto 25, 2011




Elisa Lucinda dos Campos Gomes (Vitória, ES, 1958), graduada em jornalismo, atriz na cidade do Rio de Janeiro desde 1986, atua em teatro, cinema e televisão. Publicou seu primeiro livro de poesia O Semelhante em 1994 (também lançado no formato de CD de poesia) e o transformou numa peça de mesmo nome, na qual declamava seus versos e conversava com a platéia. Parem de falar mal da rotina seguiu o caminho inverso: primeiro foi assistido nos palcos por mais de um milhão de pessoas no mundo todo (desde 2002), depois, foi transformado em livro (2010). Elisa Lucinda é reconhecida pela sua literatura poética (Eu Te Amo e Suas Estréias, Notícias de mim – ambos, livro e CD -, A Fúria da Beleza), infantil (A menina transparente, Lili a rainha das escolhas, O órfão famoso, O menino inesperado), além de seus espetáculos, recitais e workshops; por seus trabalhos: na televisão (Mullheres Apaixonadas, Páginas da Vida); no cinema (Alegres comadres, Gregório de Matos); e pela “Escola Lucinda de Poesia Viva” na qual ensina interpretação teatral da poesia. Mantém o site casapoema.com.br/, o blog www.escolalucinda.com.br/alira/, perfil no Facebook (Elisa Lucinda) e no twitter (@lucindaelisa).


Parem de falar mal da rotina

Teus dias escorrem entre os dedos como se não tivessem acontecido, ou como se todos eles fossem iguais? Eles realmente se repetem ou é você que parou de despender energia na sua oficina de desejos? Está precisando potencializar a coragem que a vida lhe exige? Então pare de falar mal da rotina.

A protagonista, na peça, e narradora, no livro, é uma poeta contemporânea, na paisagem de uma grande cidade, que, do início ao fim da obra, “conversa” conosco (platéia e leitor), entremeando a prosa, num tom bastante coloquial e bem-humorado, com poesias de Elisa Lucinda, reflexões filosóficas, existenciais e histórias de pessoas comuns, como nós, com seus enredos retirados do cotidiano. Sua narração tem por tema, não uma ficção qualquer, mas a “professora” dona vida e o viver, os quais são chamados, comumente, de rotina e, aparentemente, repetem-se inalteradamente todos os dias, mas só aparentemente.

A narradora cobre com o verniz da sua subjetividade, o contorno opaco da rotina, “reparando” nas pessoas, situações, cenas, fatos, acontecimentos, nos gestos (na verdade, sempre únicos e irrepetíveis), que circundam a dramaturgia diária de todos, personagens que somos do enredo de nossa própria trama existencial (que daria um belo livro, uma peça, ou um filme).

Reparar, palavra de muitos sentidos, é um dos três pilares em que está assentado o verso e o ofício da artista-protagonista, que repara (atenta, dá importância, fixa a vista) as pessoas se batendo para achar o celular, o casal de namorados no aeroporto, uma filha falando com a mãe na loja, o artesão popular cujo atelier é a rua, o mendigo, o taxista, a empregada que deixa o marido que lhe bate e casa com um paquera, a moça que passa na hora do rush na fila do ônibus…

A poetisa, ao contemplar o mundo, consegue, por momentos, viver a vida daqueles que estão sendo “reparados”, ou seja, consegue ser, por um momento, o outro. E o leitor, ao reparar a poeta fazer isso, também tem a oportunidade desta “experiência” (a de ver-se de fora, auto-analisar-se) e é desafiado a fazer o mesmo, consigo, em sua própria vida. Nessa experiência, redescobrimos nossa humanidade, percebendo que “todo mundo quer ser feliz, todo mundo é sonhador, lutador, errático; todo mundo quer amar, todo mundo quer ser amado, todo mundo se endivida, todos querem fazer algum desenho no papel da vida” (LUCINDA, 2010, p. 35-36).

Os outros dois pilares da artista são “o costume de escutar a conversa dos outros” (com o qual Elisa transforma-se em cronista de seu tempo, registrando as histórias que ouve nas esquinas, lojas, praias, aeroportos e ruas do mundo) e o desfrutar da “consciência real e constante de que [...] todo homem é presumidamente de primeira classe”, e não “só quem é rico, famoso e/ou quem em poder” todos nós somos, a princípio, cidadãos de primeira classe” (LUCINDA, 2010, p. 32 e 37).

Se a “professora” dona vida pode nos ensinar a viver, como sugere Elisa Lucinda, Parem de falar mal da rotina é um excelente livro de auto-ajuda, no melhor sentido que este termo pode ter (se é que o pode) e deveria figurar na lista de mais vendidos. A obra pode ser relacionada à Como Proust pode mudar sua vida de Alain de Botton e A arte da vida de Zygmunt Bauman. No primeiro, o autor encontrou “ensinamentos” na vida e obra de Proust e o compilou num “manual” leve e bem-humorado que pode ajudar o leitor a mudar sua vida e ser mais feliz. No segundo, Bauman destaca que não encontraremos num shoping “o amor e a amizade, os prazeres da vida doméstica, a satisfação que vem de cuidar dos entes queridos ou de ajudar um vizinho em dificuldade, a auto- estima proveniente do trabalho bem-feito [...] o reconhecimento, a simpatia e o respeito dos colegas [...] e outras pessoas a quem nos associamos” (BAUMAN, 2009, p. 12). Como diz Elisa: “vender ou comprar não garante a qualidade de nada”, pois “beijos, abraços, advertências, opiniões, afetos, cuidados [...] carinho, atenção, amizade, consideração enfim, costuma ser de graça mesmo”. A multidão de mais de 50 tipos (personagens) “reparados” na obra de Elisa Lucinda nos mostra que pode obter-se e usufruir esses bens não-comerciais e não-negociáveis assumindo, no dia-a-dia, o papel de atores, diretores e produtores das nossas próprias vidas, na qual “o enredo / a gente sempre todo dia tece” (LUCINDA, 2010, p. 21 e 48).

Outra obra com a qual o texto dialoga é O mestre ignorante do filósofo Jaques Rancière, para quem a igualdade é da natureza humana e a desigualdade (por riqueza ou instrução) é uma ficção inventada para desunir e categorizar. Elisa desenvolve muitas de suas idéias como a de que todo homem é capaz de aprender e ensinar: ouvindo pessoas, independente da classe social ou grau de instrução, aprendemos com elas. O motorista de táxi e a cozinheira podem ser nossos professores na vida, basta que os enxerguemos como pessoas e não como sub-humanos.

Ao criar poesia e personagens que nos propiciam inúmeras experiências de alteridade (ou outridade, como diria Octavio Paz), fazendo isso primeiro no universo da oralidade, lhes dando vida em suas performances e no palco, para depois devolvê-los ao mundo da escrita, publicando-os em livro, como ocorre com Parem de falar mal da rotina, Elisa Lucinda propicia à “leitura entre nós”, múltiplas formas e diferentes linguagens de uma mesma obra de arte que dialoga e se relaciona com outras obras e formas (filmes, peças de teatro, literatura que nomeiam os capítulos e subtítulos das cenas do seu livro).

Os participantes da 14ª Jornada Nacional de Literatura poderão apreciar esta obra em mais de um meio e linguagem, pois além de ler o livro poderão assistir ao espetáculo na Jornight de 23 de agosto. Para os que não o puderem, existem vários vídeos no youtube com trechos da peça e, outros, com Geovana Pires, Ana Carolina e Elisa Lucinda declamando poesias e partes do livro (no site da autora existe um link para “TV Casa Poema / Escola Lucinda”, no qual há uma seleção).

Beth Carvalho, que assistiu a peça diversas vezes, disse que todos deveriam ver Parem de falar mal da rotina uma vez na vida. Assistir a peça, parar e reparar o livro, é uma possibilidade de sentir e vivenciar muitas experiências pessoais de outridade, e assim recuperar um pouco de nossa capacidade de contemplar, sentir a aura (como diria Walter Benjamin) das coisas, que significa sentir-se integrado aquilo que contemplamos (o personagem, a paisagem, o poema), reconhecendo-se nele e sendo por ele reconhecido (como se ele nos devolvesse o olhar que lhes endereçamos), algo tão raro, caro e escasso em nossos dias.

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