Nascimento de um poema
Um poema sempre nasce de alguma coisa que nos perturba, emociona e, embora hesite, de alguma coisa que permanece em nós até que seja escrito. E, a partir daí, nos habitar de outra forma.
Assim, um poema é sempre muito mais o que se encontra em nós, mesmo que não o suficientemente visível ou legível do que um acontecimento absolutamente novo e exterior. Não que o poeta saiba sempre o que vai escrever. Mas talvez se possa admitir que o poema por ser escrito transite ainda que em potência pelo seu pensamento, pelo seu desejo, pela sua necessidade de compreensão de si e do mundo. Pelo próprio processo de criação.
Pode inaugurar um grande silêncio, ou pelo contrário, desandar ruídos que rompem os labirintos latentes da palavra, da imagem, do pensamento, do desejo.
Um poema não se identifica apenas com o esteticamente agradável aos olhos, ao que satisfaz aos lampejos de uma linguagem asséptica. Reúne ao corpo tanto o que seduz numa nudez sempre desejada quanto ao que do corpo, ranhuras, cicatrizes, sombras, nódoas se quer esconder. Manifesta-se em tudo. Exige, no entanto, a paixão desta procura incessante que sempre se surpreende por sabê-lo sempre possível e ao mesmo tempo inatingível.
Um poema é feito de forças contraditórias. De agressividades sutis como de uma passividade feroz. Mais do que teorias, mapas, o poema exigirá sempre muito mais cumplicidade, desejo e paixão. Não que se negligencie a razão, antes, ela contém a exatidão imprescindível ao equilíbrio a que os excessos da paixão podem levar. Se é que paixão se controla alguma vez.
Prescinde das flores e dos perfumes, por mais sedutores que lhe pareçam os que lhe permeiam o fluxo tinto da escrita, do desejo ou o sabor ao dorso da língua. Prefere sempre mais a exatidão, o risco e o limite exíguo das raízes ou dos galhos e folhas – velhas páginas ressequidas – que muitos olhos ignoram cada vez mais, por vezes até à rejeição.
Um poema traz no núcleo de sua célula qualquer coisa do átomo e do átimo da poesia. A ela cabe criar realidades, inventar mundos, nascer a linguagem. O que não significa instaurar tempo ou espaço em que a palavra se aventure e desande num vozerio sem fim; antes, há que se primar pela disseminação do silêncio. A palavra se escreve por vezes à exaustão, até ser capaz de silêncio para o que deve ser significado por ela.
Traz no corpo as testemunhas de achamentos e perdas; de confissões e de puídos que cravam estrias na pele, na página; de noites de insônia e sonhos; de quase elegíveis dores que fingem flores à brasa impiedosa impingida sobre o flandres; de mãos abertas, feridas no lidar a palavra dias a fio, quando a rua sequer por um momento pôs os olhos ou o pensamento neste sangue que verte invisível, confundido com o rigor das linhas ou o desenho das letras.
Um poema traz escrito em si a silhueta do corpo dela que deve ser mantido a uma distância razoável – há sempre uma ausência necessária, exigível a velar pela saúde da presença –, mas que se permite, insinua e se faz tempo, espaço e corpo em cada linha que se desenha. Lembra, cita, refere-se incessantemente às chegadas, partidas e à sua permanência para além de toda capacidade de fé neste distanciamento necessário professado.
Está numa música como pode apenas se aninhar por completo numa única nota cujo silêncio importa mais do que toda perfomance do concerto.
Um poema é, por vezes, o esforço de remoção de películas que foram se impregnando sobre o dorso da palavra até lhe dificultar os movimentos, a visibilidade, a legibilidade. E arriscar, novas imagens – miragens que sejam – neste vazio entre o apagamento e uma nova escrita.
1 comentários
Olá Zilda!
ResponderExcluirMuito obrigada por entrar em contato comigo, através do blog.
Fico muito feliz por ter gostado!
O seu blog também é muito bem elaborado e com conteúdos super diferenciados.
Já estou seguindo!
Beijos...
Mari | http://brincandocomlivros.blogspot.com
Obrigada pela visita! Sua participação é muito importante.